Sobre a loucura de ser horizonte - Texto sobre o Filme "A loucura entre nós"

 Sobre a loucura de ser horizonte

Clarissa Borges

(Texto sobre o Filme "A loucura entre nós" de Fernanda Vareille, apresentado a convite do evento Inventarte, organizado pela Clinica Freudiana, no dia 13 de julho de 2024, no Museu Universitário de Arte-UFU)


Demorei um tempo para entender como construir este texto e como mostrar meu ponto de vista parcial e particular deste filme. Movida pela imagem inicial já me impressionei pela fotografia que ilustra a capa do filme “A loucura entre nós”. Uma mulher que anda em cima de um muro, ao fundo um horizonte feito de céu e mar, tudo é azul. Os horizontes sempre me impressionaram e aqui vou tentar mostrar porquê e como.


A diretora deste documentário, Fernanda Vareille,  começa o filme entrando no espaço, abre a cancela, abre a porta. Quando percebemos já estamos imersos no universo hospitalar, tentando entender com nosso olhar o que fazemos naquele corredor. Quem passa? Será que somos nós que estamos olhando eles ou são eles que nos olham? 


A câmera parece pousada e tranquila filmando uma cena longa, pouco a pouco somos apresentados aos personagens, vamos nos afeiçoando às suas histórias. A proximidade é tanta que começamos a nos reconhecer. Nem tudo ali é tão estranho assim, os relatos de dor, a vontade de se adequar, o sentimento lúcido de ser inadequado. O relato claro de alguém que sabe o que está em descompasso. Tudo isso faz com que o espectador entre na história que Fernanda nos mostra.


Enquanto assistia, meu olhar de artista identificava nas ações daqueles sujeitos  performances, teatro, instalações e esculturas. A expressão e a arte parecem estar em toda parte. Existe um pouco de loucura na arte? E um pouco de arte na loucura? Será que diante de uma câmera somos mais insanos? Ou fingimos na verdade que somos normais? 


Nas imagens do documentário de Fernanda não existem falas decoradas ou cenas montadas, mas sua presença claramente muda tudo. É preciso aparecer ou desaparecer da imagem, alguma decisão precisa ser tomada. Mas ainda tem aqueles que dizem odiar as câmeras, mas não saem da frente dela!


O caminho que a diretora nos propõe neste filme passa por vários lugares. Como já falei, primeiro entramos no hospital, conhecemos ali algumas pessoas e são elas que depois nos guiam para fora do hospital. Vamos para suas casas, conhecemos suas famílias, animais, sua intimidade sã, que se contrapõe à confusão coletiva de antes. Também esbarramos na solidão e no isolamento. 


Não me parece à toa que da casa da artista Leonor ela possa avistar o mar, pois, logo depois Fernanda fará sua entrevista na beira da praia. É diante daquela paisagem, e daquele horizonte, que a diretora escolhe nos dar a trágica notícia da morte de Leonor. Um horizonte azul, encontro entre céu e mar, Mas será mesmo um encontro ou seria o horizonte uma linha divisória entre estes dois estados da água, o líquido e o gasoso? 


Os horizontes nunca me parecem completamente felizes. Parecem pacíficos, mas tristemente sozinhos. Talvez, estáveis demais. Seria isso que Leonor buscava, a paz de virar horizonte? Em sua lúcida loucura ela diz que “hora estava em cima, hora estava embaixo”. Será que a artista ora era mar, ora era céu? Ora era líquida, outra ora gasosa? Será possível ficar na média? Será possível virar horizonte?


Existem muitas relações possíveis com o horizonte. As últimas cenas de Leonor me levaram imediatamente à lembrança de uma obra em vídeo-performance que mostro muito em minhas aulas: “Touch” da artista Janine Antoni.



Janine Antoni, “Touch”, 2002. 

Duração: 9:37 


Neste trabalho a artista ficou meses aprendendo a andar sobre uma corda bamba. Seu objetivo era ir até o horizonte, que ficava em frente a casa onde viveu sua infância em Bahamas, e diante desta paisagem filmar sua performance. Para enfrentar sua memória de infância a artista anda na corda bamba, pela corda seu corpo toca por alguns segundos a linha que separa céu e mar. Diante da infância ela teve que aprender a se equilibrar! Não é este nosso esforço constante? Nesta imagem de Janine Antoni ela consegue alcançar o equilíbrio e tocar naquele horizonte/memória.


Para concluir este texto, foi em um relato infantil que busquei sentido nas tramas entre a personagem Leonor e a diretora Fernanda. Faço um parêntese aqui para que ouçamos as palavras de uma criança. Aos 6 anos meu filho Oto um dia me perguntou: “Mãe, o que acontece quando a gente morre?” Eu, pessoa adulta que não sabia como responder isso a uma criança, perguntei de volta: “O que você acha?” E ele, certo de que já sabia o que falar, me respondeu imediatamente: “A gente vira história”. Nesta trama de afetos, só me resta concluir que Leonor é horizonte e Fernanda fez ela virar história.

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